Isaac Newton é o autor da frase "Se eu vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes", citação onde presta homenagem aos estudiosos que o antecederam. E eu ouso dizer que estar nos ombros dos gigantes se aplica a muitos aspectos da vida, a ficção inclusa. Porque, apesar de ser saudável separar ficção de realidade, isso não a exclui da "vida". Ficção é cultura e cultura não só é um direito humano como uma forma saudável de lidar, ruminar e causar reflexão acerca da realidade.
Indo até uma análise mais embasada. Eu posso muito bem dizer que ficção é discurso. "A linguagem, enquanto discurso, é interação e um modo de produção social. Ela não é neutra, inocente." (Brandão, 2012, p.11). Sendo assim, "narrativa fictícia" abrange diversos formatos e carrega consigo as características de qualquer discurso: viés e contexto sócio-histórico, propagando assim (direta ou indiretamente) ideologia.
O que não significa que alguém vai cometer crimes porque jogou GTA, ou que eu sairia numa aventura com um velho suspeito aos 40 anos de idade para caçar dragões. O papel do discurso quando tratamos de ficção não é tão direto, o viés ideológico de Tolkien se mostra na caracterização de suas "raças fantásticas" e mercenários (problema pelo qual o próprio autor se desculpou em vida). Assim como na vitória do Bem sobre o Mal no fim da obra. No fim, os bons são recompensados, o mal é expurgado, Sam volta para o condado e vive feliz para sempre num comercial de margarina. Blá blá blá. Esse discurso não é neutro nem inocente. Não é?
A ficção, como pode se esperar de um discurso voltado à catarse e ao estranhamento, tende a ser mais sutil e a deixar escapar aqui e ali o contexto sócio-histórico de seu autor. Pela definição linguística de "autor", Orlandi define que: “É do autor que se exige: coerência, respeito às normas estabelecidas, explicitação, clareza, conhecimento das regras textuais, originalidade, relevância e, entre outras coisas, unidade, não contradição, progresso e duração de seu discurso, ou melhor, de seu texto."
Voltando a Tolkien, por mais que ele tenha morrido negando, é impossível desassociar sua obra da Primeira Guerra Mundial. É impossível desvincular um autor que chegou a servir das circunstâncias em que seu discurso foi gerado. A ideologia e o contexto sócio-histórico não podem ser desvinculados de sua obra. O que não qualifica nem é motivo de demérito para Senhor do Anéis ou O Hobbit, clássicos do gênero fantástico de sucesso inegável. Afinal, todo discurso possui essas três coisas e não é relevante à toda análise literária tais características.
E onde quero chegar com tanta divagação e definições linguísticas? O ponto aqui é o repertório do público, lembram dos gigantes? Newton estava em pé nos ombros de seus antecessores.
E você, leitor, está em pé nos ombros de todos os autores que te trouxeram aqui, mas também em cima dos seus próprios ombros. Os gigantes e mais você. Seu mundo, sua vida, seu viés, o aglomerado de acontecimentos positivos, negativos e neutros que geraram o que você define como sua identidade. Quando se abre um livro, dá play em um filme, ou se tem contato com narrativas fictícias de qualquer outro modelo, nós em posição de público, vamos interpretá-la de acordo com nosso repertório dessa mídia e nossa carga pessoal.
É por isso que se aproximar demais de narrativas sobre seus traumas pode ser incômodo e doloroso. É por isso que se vejo na ficção comportamentos que atribuo a ambientes tóxicos minha cabeça levanta "redflags" em relação àquilo. É por isso que quando assistimos "Marley e Eu" choramos como se o cachorro morrendo fosse o nosso. Porque o discurso permeando essas obras dialoga com os discursos que te trouxeram até aqui entremeados com suas concepções de identidade. Você é uma pessoa capaz de empatia, que talvez goste de cachorros, e talvez chore à toa com filmes tristes sobre cachorros.
Como define Iser: "O lugar sistêmico é dado pelos lugares vazios, os quais são lacunas que marcam enclaves no texto e demandam serem preenchidos pelo leitor. Com efeito, os lugares vazios de um sistema se caracterizam pelo fato de que não podem ser ocupados pelo próprio sistema, mas apenas por um outro. Quando isso acontece, inicia-se a atividade de constituição do leitor, razão pela qual esses enclaves representam um relé importante onde se articula a interação entre texto e leitor." (Iser, 1976, pg.107). Em língua de mestre dos magos, porém.
O leitor também faz a história enquanto preenche os lugares vazios. Sabe aquela perguntinha cretina de "quem enche os pneus do batmóvel?". Eu, como fã do Batman desde criança, responderia sem nem hesitar: o Alfred. E eu não acho que em momento algum das dezenas de versões do Bruce Wayne pela DC alguém tenha dito que o Alfred faria isso, mas eu sei que o mordomo faz tudo pelo patrão e que Bruce Wayne sendo podre de rico não encheria os pneus do próprio carro. Resultado: Alfred enche os pneus. Não é canônico, não é relevante à narrativa, mas é como eu preencho esse espaço vazio no texto. E é assim que a interpretação, a projeção e a significação de um texto funcionam. O cânone é base, mas não me limita, eu simplesmente assimilo as informações com a minha experiência de mundo.
Pode não existir "experiência individual" no mundo, mas a somatória de experiências individuais que formam sua identidade? Essa é única. Muitas pessoas podem ter uma experiência muito próxima, 99% como a sua, e é exatamente esse 1% que te distingue desse alguém. Pessoas com quem compartilhamos traumas, pessoas com quem crescemos, pessoas que viveram coisas muito próximas. Nada disso garante que teremos identidades parecidas. Somos uma somatória de eventos, mas a forma que reagimos a eles e os interpretamos é individual.
"Os textos efetivamente existem quando são lidos, ouvidos, vistos, analisados, sentidos ou interpretados por alguém." Esse processo em que o interlocutor recebe um discurso, o interpreta e atribui significado, é o que valida a existência do texto que compõe a narrativa fictícia. Não existe livro sem leitor.
E por que reagimos e interpretamos individualmente? Simplesmente porque repertório e vocabulário são individuais. Duas crianças podem ver A Bela e a Fera da Disney e uma interpretar que aquilo é o ideal de casamento CHAP onde a mulher cura os males da vida do homem no final. Mas a outra pode tirar uma interpretação de relacionamento queer dali, aplicando sua própria vivência individual de "não-pertencer" a narrativa da obra.
Não entrando no mérito da "validez" de interpretações porque pouco importa aqui. Mas, a segunda criança está alinhada ao filme que inspirou A Bela e a Fera. La Belle et la Bête (1946) de Jean Cocteau, que não só inspirou o filme da Disney, como é uma obra queer. A obra traz, da melhor forma possível na década de 40, um relacionamento que chocava por ser "anormal", prometendo no final um mundo livre onde esse casal poderia viver livre sendo quem são em público sem medo do julgo da sociedade. Além disso, é bom lembrar quem estava por trás de A Bela e a Fera (1991), Howard Ashman, um homem gay como Jean Cocteau.
Não por acaso é comum de pessoas LGBTQ+ terem sido muito fãs dessa obra na infância. Muitas pessoas conseguem se ver na Bela, uma moça introvertida que ama livros e é taxada como "estranha" por todos ao redor só por ser ela mesma. Não por acaso também esse deve ser o conto de fadas com mais releituras gays que eu já vi na vida. Trabalho maravilhoso Disney eu adoro.
E é aí que chegamos ao meu verdadeiro ponto: ninguém pode ver uma narrativa fictícia da exata forma que você vê. Isso não deveria ser um problema nem um embate. Obras com subtexto (e texto) X obviamente inspiram interpretações sobre ele, mesmo quando escondidos para sobreviver a indústrias preconceituosas. Muita gente pode achar A Bela e a Fera (1991) extremamente gay, mas o contexto social que te dá essa leitura é só seu. O contexto que me faz me ver numa peça de mídia só me pertence, é derivado da somatória de eventos que compõe meu "eu", dos discursos com os quais compactuo e daqueles que tenho repugno também. É por isso também que você pode dar a exata mesma premissa a vários autores diferentes e no fim terá uma porção de histórias diferentes entre si.
Há sim interpretações complicadas, coisas que não cabem e não são adequadas. Há também fanfic, que ultrapassa toda e qualquer limitação que o simples interpretar poderia ter. Mas na maior parte do tempo interpretações são neutras, são resultado da experiência do interlocutor que não expressam nada especial.
Alfred enchendo pneus não tem nenhum significado profundo sobre minha psique. O que não a torna uma interpretação descabida, inválida, tampouco absoluta. Eu achar que o mordomo enche pneus não significa que outras interpretações estão erradas. Ou que se amanhã a DC publicar um quadrinho onde o Coringa esteja fazendo isso eu não possa considerar a hipótese, o processo de preenchimento dos lugares vazios só existe enquanto há um lugar vazio para ser preenchido. Se Dom Casmurro nos respondesse o "traiu ou não?", não seria evento anual o julgamento de Capitu nas redes sociais.
Quando eu abro um livro estou sobre os ombros de quem me alfabetizou, sobre os ombros de todos os autores que já li, sobre os ombros de cada professor e professora que me ensinou a interpretar texto. Sobre os ombros de todos os profissionais da minha área e correlatas que tenho o prazer de ler e estudar. Sobre os ombros daquela menina de seis anos que tentava ler Dom Quixote mesmo sem entender bulhufas. E eu vejo tão longe quanto essa somatória de gigantes pode me levar, horizonte este que se expande um tiquinho mais a cada página virada. Todos nós estamos sobre esses ombros. Onde eu leio alho você talvez leia bugalho, simplesmente porque estamos vendo horizontes diferentes, e não há razão lógica para discutir interpretações subjetivas e irrelevantes à narrativa que em nada ferem ninguém.