A Importância de Sonhar em Tempo de Guerra
Eu já falei aqui antes que a literatura em que acredito é uma ficção que defini como uma “literatura como pulsão de vida” e, apesar de poder citar dezenas de livros que me evoquem essa pulsão de vida, acho que até então nenhum livro jamais havia sintetizado tão bem quanto esse.
“Sonhos em Tempo de Guerra: Memórias de Infância” é uma obra de Ngũgĩ Wa Thiong’o, autor e dramaturgo queniano, que narra as memórias de sua infância num período de extrema instabilidade política no Quênia durante a Segunda Guerra e depois dela nos eventos que viriam a culminar na independência do país. Logo de cara, a obra inicia com um relato sobre um homem que por ter sido pego com projeteis iria para forca, mas consegue fugir da polícia bravamente — história essa que empolga extremamente o narrador.
Para contextualizar, estou cursando uma matéria de História da África na faculdade e nosso professor nos propôs que a avaliação final fosse uma resenha crítica sobre um dos livros indicados por ele. Dentre eles, reconheci o título “Sonhos em Tempo de Guerra” que creio ter visto no perfil da Cia das Letras no Instagram ou algo do tipo, porque lembrei que gostei da sinopse e achava a capa muito boa. Assim, naquele primeiro dia de aula meses atrás decidi que seria minha leitura.
Se eu pudesse saber a jornada que me aguardava entre essas páginas, eu teria lido esse livro lá atrás quando a capa e a sinopse me cativaram, mas antes tarde do que nunca. Sonhos em Tempo de Guerra é uma obra intimista, de influência gótica, e com um tom juvenil de adoçar a boca. O autor narra sua estrutura familiar, como era Limuru, a fuga de seu pai de Nairóbi antes de seu nascimento para não ter que servir na Primeira Guerra Mundial, e até mesmo uma maldição que teria atingido seus avós paternos e expurgado seu pai e um irmão de sua terra natal. A obra condensa em poucas páginas um nível assustador de informações, tanto pessoais quanto geopolíticas. Tudo isso com uma narração de dar inveja a qualquer autor.
Só que aí que entra o pulo do gato, porque Sonhos em Tempo de Guerra não é sobre as guerras, não é sobre os horrores vivenciados por Thiong’o desde menino, não é sobre a opressão do estado colonial. Muito pelo contrário, a obra narra as caminhadas longas à escola que eram divertidas na mesma medida que cansativas, é também sobre as mazelas da pobreza, mas nunca em tom derrotista. Também não é ingênua, acrítica do contexto em que o autor estava inserido, mas, trazendo um repertório meu: essa obra fala exatamente do que Paulo Freire define como esperançar.
A mãe de Thiong’o é a fonte desse esperançar dele, seu pilar de sustentação e também quem lutou desde sempre por seus filhos. Wanjiku é uma personagem cativante, que tem voz ativa na família e sempre sabe o que dizer aos seus filhos. Não por acaso o livro encerra com a seguinte passagem:
“Sim, mãe, porque eu também sei que o que ela realmente está me pedindo é a renovação de nosso pacto — de sonhar mesmo em tempo de guerra.”
Essa esperança crítica, consciente da realidade material que o cerca, é o que guia a narração do início ao fim dessa obra. As condições do nascimento do autor eram péssimas, havia conflitos dentro do continente africano de estados colonizados em lados opostos da Segunda Guerra Mundial, apesar da riqueza em cabras de seu pai, a família deles não ia tão bem com o estado colonial lhes roubando as terras. Em dado momento da história, o autor precisava caminhar nove quilômetros para ir até sua escola, a única opção que tinha para estudar. É possível afirmar que havia tudo de possível para que Ngũgĩ Wa Thiong’o fracasse na vida, a mesa estava posta com tudo contra ele, e, mesmo assim, ele seguiu com seu pacto de se manter sonhando, esperançando.
Não vamos confundir esse sonhar com uma suposta “resiliência” meritocrática, ninguém deveria precisar andar nove quilômetros e ficar sem comer para ter acesso a uma escola. Assim como parte meu coração que Wanjiku tenha precisado lutar tanto para seus filhos terem o que considero o mínimo como seres humanos — o direito à vida, porque se você não tem o direito de sonhar estão te negando o direito de viver, relegando à mera sobrevivência. É triste que os pais e os irmãos de Thiong’o não tenham tido acesso a esses mesmos estudos, por conta dessas barreiras físicas e monetárias.
Se antes de ler essa obra eu já estava dissertando sobre o poder da literatura em gerar pulsão de vida, agora poderia fazer uma tatuagem dessa hiena da capa para marcar o ensinamento na pele. Thiong’o me lembrou do poder de seguir com a vida em meio às confusões megalomaníacas daqueles que estão no poder, de ter pessoas em quem se apoiar e, acima de tudo, seguir sonhando mesmo quando tudo parece nos dizer que nosso mundo pode acabar amanhã.
Assim, gostaria de trazer minha resenha da obra em si (que obviamente contém spoilers), mas, para citar Ursula Le Guin pela milésima vez nessa newsletter: “É bom ter um destino para jornada a frente, mas, no fim, o que importa é a jornada.” Trago essa citação como um pedido a você que me lê, não se deixe coagir pelo conceito alienígena de “spoilers”, é impossível que uma simples resenha possa trazer toda a jornada de Sonhos em Tempo de Guerra, é impossível que eu “estrague” sua experiência ao falar no conteúdo da obra. Ela é muito maior do que o destino para o qual aponta, muito maior do que posso colocar em palavras, e você certamente interpretará questões que deixei escapar — ou que mantive apenhas na resenha crítica que vai para o professor, em vez da versão que deixei pública aqui e no Maratona App.
Resenha do Livro
Pela escrita de Thiong’o, o Quênia ganha vida como uma personagem própria. As florestas somem, dando espaço a monocultura agrária, e é possível ver o personagem “Quênia” mudando sua forma de ser com tudo isso — muito provavelmente a razão da hiena representada na capa ter diversas partes coladas por cima, uma amálgama de identidades sobrepostas. Tudo isso enquanto uma história é nos contada, quase em tom de causo, numa espécie de jornada Quênia adentro e Quênia afora. Achei maravilhoso como, apesar de ser um relato, o autor mantém o lirismo e pinta com vivacidade cada detalhe do cenário.
A retratação da Segunda Guerra, a qual Thiong’o nasceu sob a sombra segundo ele próprio, me surpreendeu e cativou em igual medida. Para ele, uma criança no Quênia, havia um “vocabulário de guerra” cheio de nomes de figuras vagas, as quais ele dividia entre heróis e ogros em sua mente infantil.
É interessante ver o paradigma da “guerra para acabar com todas as guerras” vigorando desde o início da Segunda Guerra, nos cantos mais diversos do mundo. Thiong’o era uma criança exposta a essa espetacularização de um conflito de porte mundial. Achei uma abordagem bela e responsável do tema, porque, apesar das confusões de memória infantil, não é difícil entender o viés desse texto com o irmão Kabae por perto. Um soldado queniano que foi largado pelo Estado no minuto em que o conflito terminou, depois de sabe se lá quantas batalhas assistidas.
Kabae apresenta sinais clássicos de transtorno do estresse pós-traumático em soldados. Alcoolismo, distanciamento da família e uma aversão gutural por falar no que foi vivido na guerra — que, obviamente, não seria nada belo ou heroico como o Thiong’o criança esperava. Apesar disso, o irmão Kabae, é também o intelectual da família que inspira o autor a querer saber mais sobre o mundo.
Achei muito interessante como Kabae, mesmo sendo vítima direta do estado colonial, mais tarde se torna agente opressor deste (ou melhor, uma vez mais se torna agente opressor, visto o papel histórico de forças militares). Isso em contraposição ao Bom Wallace se torna ainda mais gritante, uma família foi separada por conta de interesses do homem branco a níveis tão profundos que Kabae e Tombo estariam dispostos a entregar seus próprios irmãos, mesmo que isso significasse a morte deles.
É impossível não analisar esse contexto com os eventos recentes no Brasil, apesar de não termos uma guerra civil em curso, desde 2018 diversas famílias foram fragmentadas pela polarização política no país. Creio que a pandemia em 2020 tenha agravado ainda mais essas feridas, afinal, milhões morreram em consequência da má administração do governo Bolsonaro. Assim como Thiong’o narra que aos poucos o tal “estado de emergência” vai assolando as pessoas da cidade, até que um dia finalmente chega em sua casa, perseguindo o Bom Wallace, o COVID foi deixando de ser sobre milhares de mortes na Europa para se tornar a morte diária de colegas, amigos e parentes no Brasil.
Gostei da forma que a obra foi estruturada cronologicamente, normalmente quando se propõe relatar memórias as pessoas seguem uma cronologia linear. Vão do nascimento até algum evento delimitante, mas não aqui. Thiong’o começa a história por seu clímax, a fuga de Wallace. Então nos faz apertar os cintos para acompanhar essa jornada que contextualiza como tudo chegou àquele ponto, é uma abordagem extremamente realista do meu ponto de vista. Quando olho para minha infância, há diversos eventos que não tenho certeza da ordem cronológica e muitas vezes preciso perguntar aos meus irmãos mais velhos quando exatamente aconteceu.
Essa fluidez narrativa, somada a prosa lírica e a narração maravilhosa do autor, tornam a obra de uma grandeza literária que não cabe em palavras. Se tivesse que fazer uma aposta, diria que essa obra é do tipo que consagra pelo tempo e alcança o cânone de seu país. Ao menos, farei o que estiver em meu alcance para exaltá-la.
Outro ponto alto da trama, que não poderia de forma alguma ser ignorado, é a mãe de Thiong’o. Uma mulher descrita como brava, que faz qualquer coisa funcionar uma vez que se decide. É impossível para mim não ler esse livro e me emocionar com o quanto essa mãe lutou por seus filhos, o quanto deve ter sido assustador para ela ter que lutar. Sem ela, creio que não teríamos livro algum e o autor certamente concordaria comigo neste ponto. Kabae pode ter inspirado Thiong’o a querer aprender, mas foi sua mãe que propiciou os meios para que seus olhos fossem tratados, foi sua mãe quem o propôs que estudasse quando todos os seus irmãos haviam abandonado a escola, foi sua mãe quem o fez jurar que daria o seu melhor sempre. Ao longo desse livro, é impossível não notar o quanto Thiong’o foi amado e zelado por Wanjiku.
Acima de tudo, Wanjiku o ensinou o valor de sonhar em tempo de guerra, algo que também aprendi na pandemia com Paulo Gustavo. Se rir é um ato de resistência, creio que se dar o direito de sonhar em meio a massacres, quando sua família foi desmantelada por um povo estranho do outro lado do mundo que sequer considera seu povo como gente de verdade, seja de um caráter revolucionário. Os guerreiros Mau Mau podem ser heróis nas memórias de Thiong’o, assim como o feiticeiro Ndiro seja o mais poderoso de todos com seus guizos, mas, para mim, e suponho que para o autor também, a verdadeira heroína dessa história é Wanjiku. Seu brio, seu carinho, e sua revolução que tornou possível que Thiong’o se tornasse o homem que foi. Faz alguns anos que não choro lendo, mas foi impossível não derrubar lágrimas ao final, quando tudo nessa obra soa tão próximo, tão pessoal até, mesmo que haja décadas e um oceano me separando dessa narrativa. Talvez esse seja o maior feito de Thiong’o, o de sensibilizar seu leitor, porque mesmo não tendo vivido o que ele viveu, o autor nos cativa a cada parágrafo e aproxima seu viver, seus sonhar, suas dores, e seus receios dos nossos viveres e sonhares.
Sinopse do Livro
Um das principais vozes da literatura africana contemporânea e frequentemente cotado para receber o Prêmio Nobel de Literatura, Ngũgĩ wa Thiong'o revisita sua infância em Sonhos em tempo de guerra, primeiro volume de suas memórias. O escritor nasceu em 1938, em uma região rural do Quênia, durante a ocupação britânica. Seu pai era polígamo e a família, formada por quatro esposas e 24 filhos, era uma comunidade que experimentava as diversas mudanças provocadas pelo colonialismo. Thiong'o mistura brincadeiras infantis e reflexões sobre o cenário político, como o hábito de contar histórias nas cabanas das mulheres de seu pai, a curiosidade de ouvir a experiência de um irmão que participou da Segunda Guerra Mundial, as brincadeiras com os filhos de donos de terra, e como essas relações mudam quando Thiong'o e seus irmãos passam a trabalhar nos campos. Com sutileza, o escritor compõe um cenário em transformação. Os cultivos tradicionais são substituídos pela produção escolhida pelos colonizadores, homens brancos aparecem nas plantações e crianças mestiças começam a nascer, mudando a composição das famílias. Sonhos em tempo de guerra também explora a descoberta da paixão de Thiong'o pelas histórias, pelas palavras e o momento em que ele se dá conta de sua sede de aprender. Frequentar a escola pode ser algo sacrificante, que exige longas caminhadas e impõe a sensação constante de fome, mas que lhe oferece a oportunidade de aprender a ler, o que lhe permite conhecer muitas mais histórias. Com um texto leve e envolvente, Thiong’o recorda momentos de descoberta infantil, como a primeira vez em que esteve em uma cidade e seu desejo de viajar de trem pela primeira vez. Suas observações se misturam com as lembranças de ataques da rebelião Mau Mau, que desafiou o domínio inglês defendendo a independência do Quênia. O escritor tem uma visão complexa do impacto do colonialismo nos países africanos que se reflete em sua ficção. As memórias de Ngũgĩ wa Thiong'o são essenciais para compreender a formação do escritor e a postura crítica presente em sua ficção.